Entrevista “Sociedade da Mesa”

Entrevista de Miguel Alonso para a revista “Sociedade da Mesa”

n103_out11-22Dança por paixão e também como profissão. Miguel Alonso tem uma formação em dança privilegiada: cursou a Escola Vocacional de Dança, instituição pertencente ao Balé Nacional de Cuba, e em seguida, ingressou no Balé Espanhol de Cuba. Considerado o melhor bailarino flamenco no Brasil, entre a malemolência da salsa e o vigor do flamenco, Miguel é a pura tradução de arte e paixão.

Como você começou na dança? O que o fez ser um bailarinoprofissional?
Comecei com meus amigos na escola. Fui para a Sociedade Espanhola, que se chama Centro Andaluz e fica em Havana, Cuba, onde minha família é associada. Ali, meus colegas de escola dançavam flamenco. Um dia, um aluno faltou e disseram: “Entre aí Miguel!”. Eu entrei e comecei a dançar. Claro que era uma rumba, uma coisa mais soltinha, mas foi assim que comecei. Marcando lugar até o dia que minha professora chamou minha mãe e pediu para ela comprar um par de botas pra mim. Virei um profissional por consequência de minha educação e formação. Éramos crianças entre 10 e 13 anos e fazíamos aula todos os dias. Um dia, uma professora que se chamava Andrea Mendes, formou um grupo amador. Andrea foi uma de minhas primeiras professoras de flamenco, uma cubana filha de espanhóis que criou este grupo amador no qual comecei. Quando aconteceu a febre do balé espanhol, fiz uma audição e passei. Acredito que aí comecei minha trajetória profissional. Esta história começou também pela experiência que tive com grandes maestros, grandes figuras que passaram por Cuba. Por exemplo, Maria Paz Dias, uma ex-bailarina do Balé Nacional de España, que foi fazer um intercâmbio cultural em Havana. Lá são muito comuns os intercâmbios culturais. Acompanhei Paz diariamente por alguns anos. E não posso deixar de mencionar meu aprendizado em flamenco com Antonio Gades: fiz aulas diárias com ele, de segunda a sexta, durante 6 meses. Por inspiração e admiração a eles, tornei-me um bailarino e coreógrafo profissional.

Por que escolheu o Brasil para dançar e morar?
Eu conheci uma brasileira em Cuba, uma bailarina. Casamos e tivemos um filho. Decidimos morar aqui no Brasil muito em função da pressão política que há em Cuba, dificultando a expansão profissional, em nosso caso, na dança. Os recursos lá são bem menores. Nosso filho também foi um forte motivo, poder educá-lo aqui no Brasil.

Conte-nos um pouco da vida em Cuba… Sente saudade?
Saudade vou sentir a vida inteira. É a minha terra. A vida em Cuba, para a formação profissional, principalmente em arte, no meu caso, foi muito importante. Eu tinha aulas todos os dias, era chamada escola vocacional. Enquanto estudava dança, as demais matérias como matemática, conhecimentos gerais etc., eram incluídas na programação. A escola em que estudei era a L19, em Havana (este nome era pelo nome da rua onde estava a escola). Uma escola vocacional de arte. Nela, conheci muitos artistas, de músicos a pintores, bailarinos de dança moderna a clássica, de afro a dança aquática. De tudo, sendo que cada um tinha sua leitura específica em sua própria arte. Tinha um ônibus da escola que passava por todos os bairros de Havana recolhendo as crianças. Eu começava às 7h30 todos os dias, com as aulas de dança: eficiência física, balé clássico e logo escola bolera, clássico espanhol e flamenco. Parávamos para o almoço, e à tarde seguíamos com espanhol, geografia, matemática, história e matérias de um curso convencional. Ao final da tarde, pegávamos o ônibus e voltávamos pra casa. Quando adolescentes, já fazíamos shows em tablados e teatros após as aulas, no início da noite. Assim, começaram as viagens e o convívio com grupos de dança. Este foi meu início e minha formação acadêmica e de baile.

“ Um dia, um aluno faltou e disseram: Entre aí, Miguel! ”

Existe algum papel que você gosta de interpretar?
Gosto de interpretar o que eu sinto, o que eu vivo. Se estou triste, se estou com saudade, se estou apaixonado… Acho que a melhor forma de interpretar qualquer papel como artista, é você interpretar o que sente e o que vive. Para a dança flamenca, disciplina é uma necessidade.

Quais outras características um bailarino flamenco deve ter?
A gente tem que ter o vício, tem que ser viciado em flamenco. O flamenco tem que se tornar parte da vida, como escovar os dentes. Além de sermos humildes conosco mesmos, temos que nos permitir expressar, ouvir e errar. É uma dança de expressão, e expressamos juntos. A familiaridade com outras pessoas também é importante. E a humildade, antes de tudo.

Quais os preparativos para se concentrar antes de um grande espetáculo?
Meu Deus… Eu sinceramente acho que é a tranquilidade. É o silêncio para “serenar” as emoções. Quando você apresenta algum projeto novo em sua vida, você tem que ficar em silêncio. Chego ao teatro, sigo uma rotina de palco… Os pensamentos estão ali, não me permito distrair. Concentrado. Trabalhar em silêncio para projetar serenidade.

E o que você costuma fazer para relaxar após uma apresentação?
Compartilhar com amigos aquele momento vivido. Tanto bom quanto ruim.

Em uma festa típica cubana….o que não pode faltar?
Rum cubano! O rum, a música e a alegria.

“ O flamenco tem que se tornar parte da vida, como escovar os dentes. ”

Existem pontos comuns entre a dança em Cuba e no Brasil? Viver da dança no Brasil X Viver da dança em Cuba…
De comum é o ritmo e a musicalidade, a facilidade com a música e até a origem destes ritmos. Viver da dança no Brasil é um desafio, um grande desafio. Viver da dança em Cuba já não é assim, é uma profissão muito respeitada, porém sem possibilidade de retorno financeiro e de sonhos. Por outro lado, não podemos comparar muito, pois aqui no Brasil temos a liberdade de expressar, de montar e de fazer do jeito que queremos, no caminho que escolhemos.  Em Cuba não, você tem aquele caminho e aquilo que deve fazer. Você passa a vida toda sabendo que o governo é quem decide… Aqui é a gente que decide. Você tem a liberdade de viver a arte do jeito que quer. É você quem faz. É você quem trilha o caminho. Lá em Cuba, existem pessoas maravilhosas e talentosas, e o sonho delas, hoje, é poder sair de Cuba, conhecer outras culturas, crescer. E hoje, aqui no Brasil, vocêv quer conhecer, aprender… É só ir. Sendo assim, culturalmente, viver da dança no Brasil está sendo mais grandioso e mais passional do que viver da dança em Cuba. A dança em Cuba está se tornando uma competição entre todos, você tem que ser o melhor, e só assim tem a possibilidade de sonhar novos lugares. Em Cuba, o sonho está ficando pequeno e igual pra todo mundo.

Qual a sua relação com o Brasil e com a cultura brasileira?
Minha relação com o Brasil é uma importante parte de minha vida. Vivo aqui há 11 anos com meu filho. Eu e ele, no início, sozinhos. Aprendi a cozinhar no Brasil, a sobreviver como qualquer adulto, com meu filho, meus amigos e meu trabalho. A cultura brasileira facilitou minha vivência, meu conhecimento, meu dia a dia.

Além de dançarino de flamenco, sabemos que a salsa também faz parte da sua vida.  E ritmos brasileiros? Você se arrisca em algum?
Bem, a salsa foi uma parte da minha vida, sim, porque nasci e fui criado em Havana Vieja, um lugar onde quase todo mundo dança. Nas festas, tudo era salsa, mambo, chá chá chá… Estas coisas… O ritmo brasileiro, para mim, é o samba, o forró… E, sim, arriscaria sim, dançar… Mais um pouco de Brasil e estarão iguais à salsa pra mim! (Risos).

E na cozinha? Você se arrisca a mostrar alguma arte culinária? Pode dividir uma receita pessoal conosco?
Posso sim! Na cozinha me arrisco muito. Aprendi aqui no Brasil um lado culinário que só criando um filho sozinho – depois do falecimento de minha esposa – é que você se dá conta de tudo que está aprendendo. Descobri que sei fazer comidas deliciosas (risos) e que o prato preferido que comia em Cuba, consigo fazer por aqui: o Arroz Mouro. Mas esta é uma receita muito complicada e não vou dividir com vocês. Prefiro dividir a receita dos “Tostones” que aprendi com minha avó: em Cuba, temos o costume de pegar uma banana da Terra verde, tiramos a casca e colocamos em água com sal. Depois de um tempo, secamos a banana e cortamos em gomos. Fritamos até ficar douradinha. Quando ela começa a dourar, tiramos e amassamos num papel absorvente em formato de moeda (daí o nome de tostão) e voltamos a fritar. Aqui, entra um detalhe de minha avó galega, que sempre ficou muito perto em minha infância e me ensinou muita coisa, entre elas este segredo. Depois que ela amassava a banana, amassava também um dente de alho junto da massa e comia.

“ …rum, canela em pau e mel de laranjeira ”

Cubano por nascimento, sabemos que os destilados são mais evidentes. E os vinhos, alguma preferência?
Sim! Tenho preferência por vinho chileno cabernet sauvignon.

Não podemos deixar de perguntar sobre o rum: alguma receita que você acredita ser a melhor utilização deste destilado?
Bom, lá em Cuba existiu um americano chamado Ernest Hemingway. Ele teve uma casa em Playa, bairro de Havana. Costumava ir a Havana Vieja, onde fui criado, e lá inventou uma receita que se chama Mojito. Mas eu, que sou cubano e vim viver no Brasil, tenho uma receita que acredito ser deliciosa: rum, uma canela em pau e mel de laranjeira. Delicioso e mais aromatizado. – Aliás, faz tempo que a gente não toma!

Em outubro, teremos o privilégio de receber um festival de flamenco no Teatro Municipal de São Paulo, com grandes nomes de canto e baile. Onde mais podemos conviver com esta cultura no Brasil?
Eu vivo há 11 anos aqui no Brasil. Tive o privilégio de conhecer todas as escolas e institutos. Cheguei aqui já trabalhando, dando cursos e “master classes” em vários estados brasileiros. Aqui em São Paulo, especificamente, conheci um lugar muito especial, ao qual pertenço e continuo até hoje ministrando aulas. Aqui, falamos muito sobre o flamenco: como ele é, vivência e cultura. Hoje, sou um dos professores e coordenador deste estúdio chamado EFYC – Espaço Flamenco Yara Castro. Yara Castro é a diretora geral do espaço. Casada com Fernando de La Rua, grande guitarrista brasileiro com carreira internacional, vive e ministra aulas há muitos anos em Madrid. Criadora do projeto Brasil Flamenco em Madri, Yara fomenta o intercâmbio de profissionais entre estes dois países. Em Madri, Yara mantém um tablado para profissionais brasileiros em intercâmbio, o Arte Bar La Latina. E aqui no Brasil, o EFYC é um centro de intercâmbio de profissionais espanhóis, quando aqui são convidados a ministrar aulas. O EFYC é mais que um centro de dança flamenca, é uma peña flamenca, onde a arte e cultura são compartilhadas da forma que cada um pensa a parte do ensino e da técnica. O EFYC fica no bairro do Sumaré. Uma escola que vem de uma tradição de muitos anos, onde a maioria dos profissionais atuais fizeram parte deste grupo. Existem tablados e restaurantes que divulgam o flamenco e sua arte. Existem sociedades espanholas no Rio de Janeiro e em Salvador, onde já ministrei aulas e o flamenco é bem divulgado. Aqui no EFYC dispomos de intercâmbios com grandes guitarristas, cantores e bailarinos internacionais, proporcionando atualização desta arte entre Brasil e Espanha.

n103_out11-25Ping-Pong

Dança moderna ou tradicional?
Moderna.
Tinto, Branco ou Espumante?
Tinto!
Beber sozinho ou acompanhado?
Acompanhadíssimo, de muita gente!
Caipirinha ou Cuba Libre?
Caipirinha… Desculpem! (Risos)
Ocasião para um bom vinho?
Esta entrevista, por exemplo!
Uma palavra que resuma sua vida.
Meu filho.
Um brinde.
Ao amor.

Texto: Blanca Rodrigues
Fotos: Eduardo Sardinha